No Arquipélago da Arte Contemporânea

Umbigo

05-05-2015 Link da notícia

 

Fotografias: António Néu.

Passados 20 anos, regresso a uma São Miguel que permanece quase intocada pelo tempo. Apesar de ser a ilha mais turística do arquipélago, o excesso não se faz sentir e a beleza deste já chamado Atlântida é extremamente difícil de transmitir em palavras, pois todas elas permanecem vãs perante tal magnificência.

O silêncio humano é um dos melhores atributos, que se abre depois ao som do mar, pássaros e vento que vão lentamente massajando o cérebro obrigando-o a diminuir o ritmos das sinapses. A letargia apodera-se do corpo, o descanso promete ser revigorante – ausentes as buzinadelas permanentes e a agitação das grandes cidades – ao som do poderoso mar Atlântico norte que nos vai embalando. O belo pôr do sol dá lugar ao lusco fusco e a esta altura já a paz se instalou na mente obrigando-a a desconectar-se.

No dia seguinte e de forma assoberbada fomos apresentados ao excessivamente zeloso senhor Gil que iria ser o nosso guia por um dia. Os primeiros dez minutos isentos de um segundo de silêncio anteviam o dia. Conseguimos no entanto absorver o melhor que os Açores têm para nos oferecer: o prazer da paisagem engolida pelo silêncio num perfeito shot de São Miguel. Num só dia e de forma intensa fomos das fumegantes Furnas às borbulhantes Caldeiras, passando pelas curiosas plantações de Gorreana e ananás. Após muitas imagens idílicas terminámos o périplo com o melhor dos cartões postais: a Lagoa das Sete Cidades.

Os sismos, as catástrofes naturais e a origem vulcânica fazem com que a população açoriana sinta receio da natureza e seja extremamente religiosa. Assim ao longo da nossa viagem deparámo-nos com dois grupos de romeiros que durante uma semana dão a volta à ilha (a pé). Também característico das manifestações religiosas nos Açores e proveniente de um trabalho comunitário está o comprido tapete feito de aparas de madeira em tons de verde e amarelo que inaugurou e se estendeu pelo chão doArquipélago – Centro de Artes Contemporâneas, situado na Ribeira Grande. Quando há uma procissão, as pessoas da freguesia juntam-se e fazem o tapete em comunidade. Assim a ideia foi convidar a Junta de Freguesia da Conceição a concebê-lo para a inauguração do Centro; uma forma de pegar na tradição e desconstruí-la, chamando as pessoas e levando a que se sintam integradas neste lugar dedicado à arte contemporânea. Uma das premissas do espaço que reúne artes visuais, performativas, cinema, multimédia, moda, literatura, design e ilustração reside na envolvência da comunidade. Como é que um objecto tão tradicional como os tapetes se transformou num objecto artístico contemporâneo bonito e acolhedor?

Nomeado para os prémios Mies van der Rohe, foi da adaptação de uma fábrica de tabaco e álcool que nasceu o Arquipélago, cuja inauguração foi pautada pela importância e imponência da obra arquitectónica à qual se juntaram quatro vídeos de Pedro Sena Nunes. Convidado a interpretar o edifício, o realizador criou um objecto fílmico com base nas linhas arquitectónicas e nas suas funcionalidades. “Conheço o Pedro Sena Nunes há muito tempo e acho que ele tem a linguagem fílmica e conceptual que interessava para o lançamento de um edifício muito contemporâneo e poético”, contou a directora Fátima Marques Pereira. Toda a inauguração foi pensada a partir do próprio edifício e de determinados conceitos. Um espaço cheio de memória e história em que toda a linguagem é contemporânea.

A primeira imagem impactante do icónico edifício do século XIX revela-se nas cumeeiras do telhado que se relacionam com a montanha. O projecto arquitectónico foi feito em co-autoria por Francisco Vieira de Campos + Cristina Guedes (Menos é Mais – Arquitectos) com João Mendes Ribeiro que neste projecto conseguiram ligar a tecnologia à nostalgia. “A tecnologia porque pegámos numa forma quase ancestral de construir nos Açores – com alvenaria de pedra vulcânica – e fizemos uma reinterpretação contemporânea da adaptação destes materiais incluídos numa nova mistura, o betão armado. Com isso conseguimos fazer uma aproximação sensorial e táctil entre o grande carácter do edifício existente com o novo” explicou João Mendes Ribeiro. Olhando para a maqueta Cristina Guedes falou sobre a importância que quiseram dar à pré-existência. “A arte tem que se sentir cómoda e para tal criámos uma fronteira entre a arte e a vida”. Também a trandisciplinaridade esteve em cima da mesa na concepção do projecto e segundo explicou Francisco Vieira de Campos era interessante densificar este lugar, colocar a cidade dentro da cidade “através da criação de um espaço público que fosse mais referenciado e que tivesse uma relação estreita com as pré-existências. O pátio representa para nós a primeira sala expositiva”.

O próprio nome Arquipélago significa que o edifício pertence não a São Miguel, mas sim às nove ilhas.  E como irá o espaço envolvê-las? “Todos os museus das ilhas são parceiros e uma das grandes apostas consiste na criação de residências artísticas; outra a envolvência de artistas açorianos. Existirão convites, open calls e vários formatos. Queremos chamar a comunidade”, explicou a directora. Outro dos objectivos é a internacionalização. “Quero que este edifício seja local à escala global. O Arquipélago foi abençoado duas vezes, uma com a nomeação para o prémios Mies van der Rohe, que em 420 projectos ficou nos 40 primeiros, a segunda, o facto de as low costs estarem já a voar para São Miguel o que vai trazer mais turismo ao espaço e internacionalizá-lo”.

Trata-se de um Centro que não visa apenas as exposições de artes plásticas e sim o juntar de várias valências. “É absolutamente excepcional trabalhar num edifício onde eu posso construir uma programação que cruza várias disciplinas artísticas”. Neste espaço de tempo e devido à azáfama Fátima ainda não teve tempo de sentir a ilha, mas conseguiu desenvolver uma relação com o edifício. Ao Longo de dois meses a directora só conheceu dois caminhos: de Ribeira Grande (Centro de Artes) a Lagoa (Casa) e de Lagoa a Ponta Delgada. No meio está uma equipa muito profissional que a acolheu de braços abertos e que a apoia na sua missão de internacionalizar o Centro de Artes tornando-o num espaço de excepção. A relação com o edifício passa por uma paixão. “Em qualquer lado onde estou, ao longo dos dias, vou descobrindo pormenores, recantos e novas perspectivas. Eu só tenho um filho, o Lourenço, mas sinto este edifício como um segundo filho. Ele vai crescendo em mim e esgotando-me em simultâneo. Quase que me suga, mas tranquiliza-me. Dá-me muito trabalho, mas há momentos em que estou cansadíssima e para qualquer lado para onde olhe vou sentindo paz”.

Em breve espera-nos uma nova inauguração, dia 22 de Maio o Arquipélago dá luz à sua primeira exposição de artes plásticas.